When the wolves howl their song and the whole earth is done
Você pode se sentir solitário em qualquer lugar, mas há um sabor particular na solidão quando se mora numa cidade grande, cercado por milhões de pessoas. (pág. 11)
O Carnaval para mim é uma das épocas mais solitárias. Parece uma noite de sábado que dura quatro dias, em que há aquela pressão para ser feliz e estar rodeado de gente, se divertindo, obrigatoriamente. Estar em casa numa noite de sábado é ser fracassado. Mesma coisa para o Carnaval. Ontem eu estava sentada na Paulista, esperando uma amiga, e fiquei vendo as pessoas fantasiadas passando, jovens bêbados sem camisa, muito tule e glitter. O calor estava escaldante e eu estava me sentindo sozinha.
Há alguns anos o Carnaval tem sido assim. Lembro do de 2014, eu em casa vendo True Detective, estava calor.
Carnaval é uma solidão barulhenta, me faz pensar naquele clichê do "estar sozinho rodeado de gente". Clichês geralmente são verdadeiros. O Carnaval desde ano veio acompanhado de um exorcismo na minha vida pessoal e para "celebrar" decidi escolher uma leitura adequada para o momento A Cidade Solitária, de Olivia Laing.
Laing é inglesa e foi morar em Nova Iorque com um cara. Chegando lá, o cara terminou com ela e ela se viu sozinha, morando em apartamentos pequenos, passando horas vendo clips no Youtube, espiando a vida acontecendo nas ruas.
Olivia faz um negócio sensacional nesse livro: ela linka um assunto a outro, com uma agilidade impressionante.
Quem lê aqui sabe que eu adoro linkar as coisas. Desde que li Bubble Gum da Lolita Pille, em que ela falava de The Gathering e PJ Harvey, as coisas que eu mais ouvia naquele ano de 2005. Mas enfim, Laing fala da solidão de Warhol, de Solanas, dos quadros de Edward Hopper, da violência que David Wojnarowicz sofreu. Ela mistura diversas personalidades, seus traumas, suas dores e faz uma ligação com a solidão que permeia a vida de todos eles.
O que ela fala de Wojnarowicz me chamou a atenção, dos abusos, abandono, prostituição. Quando eu tinha 11 anos eu li o livro da Christiane F. e quis ver o filme. Aquela decadência me causava repulsa, mas me atraía numa espécie bizarra de voyeurismo. Até hoje filmes junkie e livros decadentes me chamam atenção, da minha distância segura. Uma vez uma amiga disse que tinha passado de carro pela Cracolândia numa madrugada e que tinha sido uma experiência assustadora. Essa imagem ficou na minha cabeça.
Desde novinha eu ia para a Galeria do Rock e sempre passava pelos cinemas pornôs do Centro de SP. Mais uma imagem que sempre ficava presa na minha mente, vendo senhores entrando nas salas sujas, jovens saindo, uma mulher ou outra parada na porta. Recentemente visitei a exposição sobre SP no Sesc 24 de maio e vi alguns jornais antigos voltados para o público gay. Lá eles falavam quais eram os melhores "banheirões" e salas de cinema para encontros sexuais. Poucos dias depois, um amigo me contou as experiências dele naqueles cinemas. Não consegui esconder a minha curiosidade, olhos brilhando, ansiosa por detalhes. De novo, é muito estranho observar tudo isso de dentro da minha redoma.
Em A Cidade Solitária, ela fala de Klaus Nomi e de outros artistas daquela época em Nova Iorque, da AIDS, do pânico, da falta de informação. Imediatamente lembrei dos livros da Susan Sontag sobre o assunto, e Olivia cita justamente algumas falas dela. Quando eu era criança, um amigo da minha mãe era confeiteiro e preparava todas as minhas festinhas de aniversário. Minha última lembrança dele é de sua magreza, dele fazendo meu bolo e sentando de cinco em cinco minutos para descansar.
E, ainda assim, como no cantar de Nomi, eu achava que o ato de escutá-las de algum modo aliviava meu sentimento de solidão, simplesmente porque eu podia ouvir alguém expressando sua dor, dando espaço a sentimentos difíceis e humilhantes. (pág. 210)
Algumas das minhas músicas preferidas sempre foram sobre solidão. Pensando nesse texto, lembrei de várias: Alone do The Gathering, Lonely Man do Those Poor Bastards e principalmente I am so lonesome I could cry do Hank Williams. Quantas vezes não postei essas músicas em redes sociais destacando alguns trechos das letras?
Laing esbarra em assuntos que me incomodaram profundamente quando falou de Henry Darger, o solitário zelador que pintou crianças nuas e homens violentos coexistindo. Ela também cita as fotografias de Vivian Maier, por quem tive uma curiosidade extrema durante alguns meses de 2015.
As solidões que Laing retrata são em sua maioria de homens, apesar de começar falando da sua própria.
Creio que haja uma diferença gritante em ser solitária sendo uma mulher. Há pressões sociais do casamento e dos filhos, da carreira, da estabilidade financeira. E a minha geração parece cada vez mais distante disso. Esses dias até perguntei no twitter se as pessoas achavam que antigamente era mais fácil ou se as pessoas fingiam melhor. Todos concordaram: era fingimento.
O livro também fala das fotografias de Nan Goldin e Diane Arbus. Em vários trechos eu lembrei da Miranda July, ainda mais quando ela fala que passava horas no Craiglist lendo anúncios. Ela também fala um pouco dos encontros passageiros que teve com pessoas de lá, do sexo como cura temporária para solidão. Impossível não pensar nos horrores do Tinder e outros aplicativos.
Sempre penso em como as redes sociais nos afetam.
Nessa solidão de Carnaval eu até baixei o aplicativo do Facebook para o celular de novo. Apesar daquele monte de posts de foliões me incomodar, eu preciso estar inteirada de tudo. Na minha adolescência não tinha smartphone e nem computador, minha solidão era plena, mas não parecia tão opressora.
Sinto que perdi a concentração para os livros e filmes, sempre faço pausas para checar notificações.
Vejo as vidas de mais de 100 pessoas, diariamente, e me sinto cada vez mais fechada no meu mundo. E eu estou envelhecendo. Daqui menos de dez dias ultrapassarei a marca das três décadas, e eu não sei fingir bem como fez a geração anterior.
Gosto desses livros que me dilaceram, que me fazem pensar, que me dão vontade de escrever e compartilhar com as poucas pessoas que me leem algumas coisas que eu sinto. Não sei ser reclusa, nem fechada. Tenho medo da solidão, me cerco de pessoas, fico exaurida e preciso de espaço. E assim recomeça o ciclo.
Nasci no mesmo dia que David Foster Wallace, Nina Simone e Anaïs Nin. Andy Warhol morreu quando eu completei um dia de vida.
A solidão é pessoal e também é política. A solidão é coletiva; é uma cidade. (pág. 278)
Imagem de capa: Q Train de Nigel Van Wieck (1990)